domingo, 24 de outubro de 2010

Relicário

Ali, com seu corpo desfalecido em meus braços, a dor era insuportável. Sua mórbida face não lembrava em nada a vivacidade do homem que tanto batalhara, que tanto cuidara de mim, não honrava a imagem de meu pai!
Resoluta, enterrei-o e dediquei-lhe algumas lágrimas. Era tudo o que podia fazer naquele momento, mas jurei vingar sua morte.
O tempo ia passando e eu procurava tirar proveito das mudanças que me ocorriam, sem perder tempo maldizendo a vida. Passei a morar na choupana de uma velha parteira, que me aceitara como aprendiz. Aprendi mais do que a fazer partos, aprendi também a caçar, a conhecer os vários tipos de plantas dali e a não me importar em ser chamada de bruxa.
A choupana ficava afastada da vila, na floresta, e eu me sentia um pouco desconfortável ao ir até lá fazer compras. Os olhares daquelas pessoas, impiedosos, pareciam flechas, mortíferas e certeiras.
Foi numa dessas vezes, quando precisei comprar uma fazenda de veludo, que avistei os olhos mais belos da região. Eram olhos profundos e sinceros, que não me desprezavam. Eram os olhos de um cavaleiro da guarda, que mesmo proíbidos, me seguiam.
Os dias se passavam normalmente, sem que eu pudesse me esquecer daqueles olhos. Até porque o tal cavaleiro, Álvaro, como vim saber depois, me velava todas as noites, cavalgando solitário pela floresta.
Estava cada vez mais apaixonada, entorpecida. Incapaz de me conter, esperei que viesse a noite e ela trouxesse meu cavaleiro. Ela o trouxe, e nos presenteou com um luar especialmente belo.
Ao ver-me ali prostrada, incapaz de qualquer reação, ele sorriu, desmontou e veio ao meu encontro. Beijei-o como se aquele fosse nosso último encontro, com paixão e com saudade. O resto daquela noite foi incrivelmente perfeito, tudo transcorreu de uma forma que eu nunca ousara idealizar.
A noite se foi e a aurora anunciava tristemente meu destino. Despedimo-nos com um beijo e eu voltei para casa. A velha chamava-me desesperada, e apertou minha mão quando aproximei-me dela. Ela balbuciava frases desconexas, mas pude compreender algo como "promessa cumprida", "possível herdeiro" e "destino". Fechou os olhos e deixou-se morrer. Enterrei-a ao lado da sepultura de meu pai.
Nisso, Álvaro adentrou a choupana e avisou-me, um tanto perturbado, que partiria. Fora convocado para outra batalha. Ainda entregou-me um relicário, uma jóia que pertencera a um antigo amigo da guarda, morto recentemente por um ladrão e devidamente vingado. Beijou-me como que despedindo-se e partiu dizendo um adeus solene.
Atordoada com tantos fatos, acabei reconhecendo aquele relicário como sendo de meu pai, o que me deixou perplexa!
Foi então que as palavras da velha pareceram-me muito claras. Minha promessa de vingança fora cumprida e meu destino agora era esperar pelo possível herdeiro de um amor que me ligava a dois grandes homens. Os quais eu carregaria para sempre no coração e naquele antigo relicário.

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